segunda-feira, dezembro 22, 2008

Em terra de visionários quem não tem um olho é rei?

(Escrito dia 21 de Dezembro, pelas 0:15h - Crítica e análise despretensiosa, não aconselhável a quem ainda não viu Blindness)

Acabei agora de chegar de Castelo Branco com uma enorme vontade de escorrer na folha branca o que me percorre. Já não via um filme no cinema há meses, é certo, mas o que hoje vi não foi apenas um filme, foi um compêndio de sabedoria e lucidez.

Não li o livro do Saramago e, muito embora considere que existe uma diferença nítida entre um livro e um filme, entre um argumento, propriamente dito, e uma linguagem multi-sensorial que nos permite captar mais que uma ideia ou um gosto estético na palavra, escreverei o que a seguir se depreenderá. A imaginação é um campo vasto, bem sei, mas gosto de ser sensorialmente manietado, gosto mais de CINEMA!

Dizia o Bazin sobre os "jovens turcos": "(...)eles têm o cuidado de nunca reduzir o cinema ao que ele exprime(...)". Entendo-o, mas desprezo-o simultaneamente... Gosto de perspectivas holistas e sinto algum repúdio pelo deslumbre de "uma certa tendência" pretensiosa direccionada a perspectivas eminentemente monistas... "Le cinéma est le cinéma"? Já achei que sim, mas cada vez penso mais que não faz sentido algum pensar que sim...

Guardarei, portanto, o sumo para o fim e, armando-me em "turco", direi somente que há, pelo menos, um plano em Blindness que fala por si. Passa-se já no "campo de concentração", quando Meirelles filma Julianne Moore e Mark Ruffalo num só plano fixo, ela em close-up e ele desfocado, em pano de fundo. Poder-se-ia até dizer que escapou ao realizador o uso da profundidade de campo, embora considere esse "escapar" profundamente intencional e absolutamente valorizável. Meirelles é grande! Ela vê, ele não... É o cinema a falar por si, num apogeu de tremenda intensidade, num "fazer de mestre". Tecnicamente perfeito, de início ao fim... Vulgares os planos de branquidão, fácil a música que os acessoria..., belos, ainda assim...


Mas não falemos de cinema, aliás, não falemos de "Blindness", falemos antes do sumo! Falemos de "Ensaio sobre a cegueira", ou das possibilidades de exploração de um argumento por via de um processo "não-cinemático, ainda assim, cinéfilo"!

Este ensaio sobre a cegueira é, simultaneamente, um ensaio sobre as virtudes e defeitos (para não usar a expressão "pecados", mais própria de um texto religioso do que de uma qualquer acepção contemporânea) do homem, sobre a natureza humana, em sentido complexo, diga-se...

Aborda-se a temperança, a alteridade, a prudência, a coragem, o ódio, a inveja, a luxúria, a vaidade, entre tantos outros conceitos que lhes estão conexos...

Saramago pergunta: E se toda a gente ficasse, de súbito, cega?

Saramago pergunta: O Homem é "bom selvagem" ou "Leviathã"?

Saramago pergunta: Onde desemboca "macro-socialmente" o colectivismo? (pergunta, aliás, interessante para quem sempre se assumiu comunista...)

Perante uma suposta patologia, cuja explicação científica não se encontra, o estado logo se prontifica a afirmá-la contagiosa e a velar pela sobrevivência dos não-infectados, tratando os restantes "como os nazis trataram os tais indivíduos de nariz meio esquisito"... A possibilidade de não-contágio, perante a necessidade de salvar a espécie, nem sequer se figura, mas, uma coisa é certa, a mulher do médico resiste...

Já no campo de concentração vemos o médico encarnar a figura do "sábio", o homem que parece ser o estereótipo do "bem formado". No entanto, Saramago, como contemporaneamente se impõe, procura escapar à dicotomia Hobbes/Rousseau, preferindo, parece-me, entender uns como bons, outros como maus, todos capazes de ver o bem e o mal, alguns mais toldados, outros mais ainda. E é esse comunista chamado Saramago que aborda a fome no epicentro do bem e do mal, esse comunista que, concordando com Rousseau num aspecto, nos diz que só em pequenas comunidades podem as coisas correr bem...

O momento em que o personagem interpretado por Danny Glover mete aquela música a passar e todos à sua volta parecem entrar numa espécie de "assumpção colectiva de belo", o momento em que esse "solitário bom selvagem" ensina aos demais o essencial, transmitindo-lhes esperança, é simultaneamente o momento em que o espectador diz para si mesmo: "cego é quem não sabe ver com o coração"...

De súbito, entra Gael García Benal e a brigada dos "mal formados da vida", dos que passaram fome... Aí Saramago, politicamente inteligente e humanamente elucidado, logo põe a nú um dos principais perigos da monarquia enquanto sistema político. Benal auto proclama-se rei, quase à semelhança de um Napoleão ou Júlio César e, coroando-se a si próprio, este "rei mal-formado" naturalmente reinará no caos mais escuro que à natureza humana pode ser mostrado...

De entre o sem número de antíteses que nos são presenteadas, é curioso analisar a cena protagonizada pelo casal oriental junto à fogueira. Ambos se amavam realmente, apercebemo-nos disso quase a final do filme. No entanto, enquanto ele esquece o caos e se agarra desesperadamente ao amor, ela tem medo ao ponto de "não se conseguir deixar guiar pelo coração"... É aí que Saramago nos diz que não há só bons e maus, há também fortes e fracos..., é aí que nos explica o que significa a coragem e a prudência..., é aí que critica o medo...

Quando a comida começa a faltar, as virtudes são suplantadas pelos Leviathãs, esses sim, os mais fortes no mundo dos "verdadeiros cegos". Logo se apressam a querer ouro, luxúria, ganância, ignorando, até, que nenhum bem material lhes servirá de algo na situação em "que-(e)stão". Quando se apercebem disso, pedem mulheres, mulheres que não amam nem querem..., pedem o "não-amor" forçado, esquecendo, afinal, o essencial..., esse essencial que alguém um dia disse ser "invisível aos olhos"...

Curiosa a personagem do verdadeiro cego, esse que sempre o fora e, quiçá, sempre se sentira inferior por isso... Ganancioso, vingativo... Quis, também ele, ser rei.

O médico não entende, pergunta-lhe porquê..., pergunta-lhe como é possível que não entenda porque, acima de todos, deveria perceber o que aquela limitação implicava. Pede-lhe para dividir, abdicar, dispôr...

A lucidez de Saramago constata-se no facto de esse médico que Ruffalo interpreta também fraquejar, no facto de também ele ter fome... Afinal, também os bons, os "bem-formados" são, acima de tudo, animais.

Ruffalo faz amor com a prostituta, mas a sua mulher resiste... Moore será talvez, no enredo do filme, a personagem menos interessante na abordagem do argumento e das ideias para as quais o mesmo nos transporta. Ainda assim, a mais importante no desenrolar da narrativa, a mais forte das "bem formadas"...

Curioso como Saramago imagina "a messias", ou o que transporta da mulher com quem vive para este ensaio sobre a cegueira... É bonito o amor, ainda que na terceira idade..., pressupõe sempre admiração! Quando Ruffalo diz a Moore que já não a vê "como mulher" e que precisa, simultaneamente, que ela lhe "limpe o rabo", penso que, na verdade, vemos Saramago a falar com a sua Pilar..., mas num outro ensaio, o da velhice...

Lembrei-me, a este propósito, de uma entrevista do David Lean que vi há muitos anos... Dizia ele sobre a Lara de Jigavo qualquer coisa como isto: "ela personifica aquela mulher que rareia, capaz de se entregar completamente a um homem e à sua obra, completando-o... A visão de Pasternak é romanceada e retrógrada, atente-se... De qualquer forma, existe com certeza um ponto de comparação entre esta "mulher do médico" e essa Lara, também ela a "mulher do médico", do possível altruísta, do filantropo...

A dada altura, acabam os campos de concentração e a cegueira deslocaliza-se rumo à constatação evidente do caos, que já tinha, aliás, sido prestidigitado pelo rádio de Glover, o zarolho. Aí, até na religião vemos esse caos, com ícones vendados e templos majestosos que perderam, naturalmente, a aura de majestade... Não sei se há mais sobre isto no livro do que no filme, mas não é explícita esta ideia que, na escrita de Saramago, parece-me, se tornaria evidente...

Há uns dias vi um documentário sobre o Saramago na 2, belíssimo, diga-se. Afirmava o autor que, de todas as personagens que inventou, a de que mais gosta é o "cão das lágrimas". Entendo agora porquê... Repare-se que, no cenário apocalíptico que Saramago figura, ao vermos "cães raivosos" a devorar cadáveres humanos, quase que nos vem à ideia que a era do homem acabara no filme... Confrontamo-nos com a tal espécie mais frágil (a humana) que, fruto do desenvolvimento da inteligência, perdeu capacidades adaptativas inatas... E depois? Depois aparece o cão que lambe as lágrimas, o cão que não quer devorar..., a metáfora de que não é só no ser humano que existem os bons e os maus, os bem e os mal formados... Simultaneamente, os olhos que não servem só para ver..., que servem, também eles, para sentir, para chorar...

Chegados à casa de Moore e Ruffalo deparamo-nos, uma vez mais, com a ideia inicialmente espelhada no antagonismo entre o "vil cego que nunca vira" e o "zarolho que deixou de ver", o que via só negro e o que via só branco... Constatamos aqui a angústia da personagem de Glover, curiosamente, o narrador... Ele que fora sempre o solitário, que vira sempre as pessoas no seu interior, que se carregava ainda de medo em enfrentar a solidão... Interessante, mais uma vez, a estonteante lucidez de Saramago quando, após o "descegar" do oriental, nos explica, simultaneamente, as angústias, os medos e os sonhos daquele aprazível "bairro do amor"...

O filme termina em grande, parece-me... Destranca-se com chave de ouro, concluindo uma mensagem de esperança, leia-se, só quando a humanidade deixa "de-ver" e volta a fazê-lo é possível a tomada de consciência do essencial...
Afirma-se, penso, a noção de que os cataclismos não se devem procurar, sendo contudo necessários ao equilíbrio do homem e da humanidade. Tal como um homem, quando cai em depressão ao sair dela se renova, a humanidade, quando deprimentemente se destrói, ao reconstruir-se valoriza-se... Tem sido assim...

Se calhar, a messias não foi Moore, essa apenas transportava o fardo... Se calhar, o verdadeiro messias desta história sobre a cegueira foi Glover, o zarolho...

Obrigado Meirelles, mas sobretudo, um grande bem haja Saramago, pela enorme lucidez e sabedoria que tens!
(e, com este texto, terminam as projecções de 2008, é a prenda de natal que vos dou...)

segunda-feira, dezembro 15, 2008

Mailing list


Inscrição na mailing list: Há cerca de um mês...
Mails recebidos: 0
Moral da história: Há duas formas de trabalhar... Uma tem por base a visibilidade, a outra tem por base o conteúdo substantivo...
A primeira das formas é a escola Santanista no seu melhor!
Filme, apenas se aconselha um: "Le mépris", ou aquilo que por mais que se queira não se consegue fazer...

terça-feira, dezembro 09, 2008

Gangs of New York


Ontem revi, pela enésima vez, o "Gangs of New York" na televisão.

Sempre admirei o cinema de Scorsese. Pela frieza, pela raiva, pela agressividade cega, espelhada, de início ao fim, numa montagem rápida e frenética. Sei, no entanto, que os méritos da montagem são partilhados com Thelma Shoonmaker, ela sim, a grande obreira do "frenetismo scorsesiano"...

Um realizador nunca é aquilo que as pessoas pensam... Há autores, certo..., mas já são raros os Fassbinder's e os Godard's deste mundo, que se empenham em acompanhar todos os processos de criação de um filme. Aliás, relativamente a Scorsese, não lhe conheço filmes em que seja simultaneamente realizador e argumentista. Se os há, desconheço-os...
Scorsese é, portanto, uma espécie de "general", um realizador propriamente dito, no sentido hollywoodesco da palavra. Sempre foi o italo-americano que, pondo de parte o seminário e a vocação sacerdotal, se entregou ao cinema americano, com um pé em Hollywood e outro na Europa. Nunca se assumiu como realizador independente, nem nunca deixou de se assumir como tal. É um híbrido, parece-me...

Mas falava de Gangs of New York e isto apenas porque ontem o vi com outros olhos... Sei que era um projecto que Scorsese tinha em mente desde os anos setenta e sei também que o levou a cabo ambicionando o óscar que, no entanto, apenas viria a conquistar por "The Departed". Lembro-me de, na altura, ter ouvido uma entrevista do Scorsese em que o mesmo dizia ser este o último filme feito com cenários reais e sem recorrer a efeitos digitais em 3d. Estava mesmo a fazer-se à estatueta o senhor!

Nunca estive em Nova York, apenas oiço falar da tal "cidade que nunca dorme" e de um multiculturalismo imenso provocado por um encontro de raças diferentes. Da urbanidade no seu estado extremo, do anonimato, do ritmo, da velocidade da vida...

Em Gangs of New York, Scorsese mostra-nos que aquela cidade foi feita por rufias, por gente da pior casta que existia e que fugiu da Europa na ânsia de encontrar um paraíso... É a vulgar história do fim das colónias... Há irlandeses, italianos, chineses, negros e tudo o mais...

Nesse ambiente de meados do século XIX, vemos as salas de ópio, os salões das gueixas, as orgias, a formação de clãs e o nascimento dos ritmos africanos que posteriormente deram origem aos blues e ao jazz. Vemos esse frenetismo um pouco por toda a tela.

Achei muito interessante o momento em que Daniel Day Lewis fala de um negro a dançar, caracterizando essa mesma dança por uma mistura e simbiose de muitíssimos factores. Scorsese é explícito: É disto que se fez a América... Na América não há americanos que não os nativos..., o resto são arestas de uma pedra, ainda por lapidar.

E agora, pergunta-se: como é que um caos absoluto desemboca noutro caos absoluto criador da maior das metrópoles? É que parece-me que terá sido esta ideia que fascinou Scorsese! A ideia do binómio construção/desconstrução, ideia comum a toda a história no que toca à emergência de civilizações, à sua decadência e às possibilidades de um "novo construir".

O resto, em "Gangs of New York", é menor... Historieta e romancezito e guerrinha para aqui e para ali... Faz parte e ocupa bom espaço, mas não deslumbra...

De qualquer forma, o "Italo-Americano" está de parabéns pelo processo catártico e pela busca das suas origens. E está de parabéns, acima de tudo, por ter conseguido mostrar, de uma certa forma, a frieza do nascimento de uma civilização, sem quaisquer máscaras.

quarta-feira, dezembro 03, 2008

Está mas é caladinho,
O Natal está a chegar

brutinho,
vai na léria...


e vai-se porque se gosta...,

só por isso e enquanto se gostar!

não destruam,
não destruo

Quero...,
para quê?

Deixo de querer...
Porquê!?

Menos porquê?

Porque não...!

Porque sim...

Porque é como é, querendo...,

Infinitamente como se é...

Como se é na resposta que não se tem

E tarda...

Mas deixem esse tardar retardado menos que o que não se retarda...

Sabe bem

a todos...,

ou não...


Não é?


Se retardar fosse retardado, eternamente no jogo de brincar...

Aí não seria?

Com as palavras?

Essa volúpia do que se expressa sem se expressar...

Como se a antítese perfeita, apenas acrescentada pelo acrescento que não vem...


Que também é deixar de cuidar, mas nunca em ignorância de ser...


Que, ao fim e ao cabo...

Se é que caibo

que não sei nem vejo........................,

sou...

talvez...