segunda-feira, março 10, 2008

Morangos e chocolate

Quando estive em Cuba, os guias, sempre que se passávamos em frente da geladaria Copélia, não perdiam a oportunidade de referir o facto de ter sido ali que tinha sido filmado o grande "Fresa y chocolate"! Foi nessa altura que, pedindo alguns esclarecimentos acerca do filme que até então não conhecia, fiquei a saber que este era o grande ícone do cinema cubano, tendo inclusive sido nomeado para o óscar de melhor filme estrangeiro (o qual, curiosamente, mais tenho em consideração).

Passados uns anos desde essa incursão por terras do Sr. Fidel, lá me lembrei de ver o filme... É assim que acontece comigo muitas vezes... Lá estão os filmes em lista de espera durante anos e anos até que, por magia ou acaso do destino, me decido a vê-los...

"Fresa y chocolate", realizado por Tomás Gutiérrez Alea em 1993, é um filme que por muitos tem sido apelidado de "gay themed movie", conceito que "desconheço" e me recuso a aceitar... Ainda assim, e mesmo tomando em linha de conta uma possível abstracção deste conceito, dificilmente enquadraria este filme no mesmo...

O filme tem como ambiente de fundo a Cuba de finais dos anos 70. De súbito, somos confrontados com a abordagem, por parte de Diego, um homossexual avesso ao regime, relativamente a David, um estudante universitário completamente "lavado" pela doutrina marxista e, ainda que inteligente, demasiado inocente para compreender os defeitos do comunismo cubano.

Diego e David vão aprofundando a sua relação... A intenção de Diego foi sempre a de aproximar David da verdadeira cultura, livre e independente de propaganda, mobilizando-o para a sua causa, "A Cuba Livre". Com o estreitar da relação entre ambos, vamo-nos apercebendo que é possível uma relação entre dois homens com orientações sexuais distintas e que a cultura não passa apenas por ler muitos livros, mas sim os livros certos, aqueles que estão despojados de facciosismos e concentrados em abordar temas, independentemente de conotações dogmáticas.

Poderá até parecer irónico o parágrafo anterior, uma vez que este filme é, marcadamente intervencionista, mas, pondo de parte a polémica do "engagement" que opôs Gide e Sartre em meados do século passado, o importante é perceber que o tema central em "Fresa y chocolate" é a noção de que, em liberdade, a racionalidade se altera, uma vez que as premissas são globais, coisa que nunca poderá acontecer numa educação partidarizada.

Diego é o intelectual por excelência. A sua casa é um museu de livros proibidos pelo regime, um repositório de produtos inacessíveis ao comum dos Cubanos, onde até uma garrafa de Johnnie Walker se pode beber de vez em quando. Em tempos, terá sido um fervoroso adepto do regime, mas cedo as suas esperanças se esventraram, fruto dos abusos de um poder que não mais tinha como prioridade os ideais comunistas, mas sim a sua subsistência... David começa a frequentar a casa de Diego muito a medo, mas a hipótese de ler coisas inacessíveis e o deslumbre relativo às possibilidades que até então julgava impossíveis, rapidamente o vão seduzindo e convidando a voltar mais e mais vezes.

A história é simples e até preenchida por alguns clichés... O miúdo inteligente, educado num ambiente limitado, que conhece o mestre que lhe dá acesso a tudo o que sempre quis... É, no entanto, um filme agradável de ver, muito narrativo, muito fluído...

Devo dizer que não gostei do início nem do final, acho-os demasiado drásticos, mal preparados, pouco romanceados, como quer que se lhe queira chamar... Há quem goste, não duvido... Há quem goste de ver filmes em que o romance é desmascarado para provocar o conceito desse próprio "desmascarar"... Mas eu sou daqueles que não apreciam Bresson por aí além... Chamem-me antiquado, inocente, energúmeno, o que quiserem, mas para mim o cinema é, ou escapismo, ou conhecimento, ou estética, ou narrativa... A arte dos conceitos devia ser substituída por frases..., seria mais simples então partilhar conceitos, em vez de os estampar em imagens...

Relativamente à fotografia devo dizer que não é nada por aí além... Gostei da cor, tão só... Achei-a muito latina, apropriada, enfim...

Passo a vida a sonhar com filmes que falem por si, que sejam feitos de instantes que, de tão marcantes que são, possam contar uma história na ausência de palavras... Esses filmes são o que chamo de "road movies sem estrada", aqueles em que um gesto de um personagem nos leva a conhecer a sua essência, sem que esta tenha que ser descrita de uma forma estritamente narrativa... Chego a um ponto em que os filmes que me satisfazem realmente são apenas esses..., em que tenho quase medo de ver filmes por saber que vou ficar desiludido... O cinema denso é bom, tem muitas vezes efeitos psicanalíticos, mas, para mim, nada se compara a um filme feito de factos banais, recheado de conceitos banais, nos quais podemos encontrar o âmago de personagens que, de tão banais que são, se tornam únicas... Estou a falar de filmes como "A vida sonhada dos anjos", "30 anos esta noite", "Os sonhadores", "Os 400 golpes", "O gosto dos outros", etc... Filmes intimistas, pessoais, aqueles em que "a caméra é realmente un stylo"!

Filmes destes são difíceis de encontrar... Ainda há dois dias vi "Lie with me" e, quando comecei a ver, pensei que seria um dos tais..., mas não era..., faltava qualquer coisa... Há uma certa dose de hedonismo no meu gosto pelo cinema... Procuro muitas vezes o prazer absoluto, aquilo que "mais me toca dentro do que mais me toca"... O problema é que esse "mais que tudo" apenas se alcança algumas vezes, raras... e no fim acaba por ficar a desilusão por não ter sido o "nosso perfeito"...

"Fresa y chocolate" não é para mim um desses filmes, mas ainda assim "vê-se", é agradável, fluído, como disse anteriormente...

E por aqui me fico, no emaranhado de uma série de ideias confusas que, quanto mais amadurecem, mais confusas se tornam...

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